O que são Mantras?

por '27 fev 2011'Artigos

Este artigo que eu gostei muito foi retirado da revista História Viva de autoria do professor Andre De Rose.

Ele explica de forma didática e detalhada o que é mantra, como ele funciona, qual a sua relação com o Yoga e os Chakras além de falar um pouco do desenvolvimento histórico.

Por ser um assunto complexo o texto é longo, mas esta de fácil entendimento. Ele é essencial para você que pratica Yoga, pois o mantra tem uma conexão fundamental com essa prática.

Boa leitura!


 

baseado integralmente nos ensinamentos do professor Carlos Eduardo G. Barbosa

Mantra, a rigor, não faz parte das práticas do Yoga, mas é utilizado por muitos de seus praticantes. Certamente é um dos assuntos mais encantadores que a Índia nos legou. Apesar da simplicidade de sua teoria, são tantos e tão diversificados os usos do mantra que até mesmo o estudioso do tema se confunde, vez ou outra, com a variedade.

Então vamos fazer uma aproximação cuidadosa do tema, para que você possa compreender a importância que o mantra ganhou junto aos yoginas. De uma maneira geral, existe a noção genérica de que o mantra é uma sílaba, palavra ou sequencia de palavras e sílabas, que revelariam algum tipo de poder, quando pronunciadas da maneira correta.

Fala-se em palavras mágicas, sons capazes de operar grandes transformações na vida de quem com eles se envolve. Nosso objetivo aqui é tentar compreender qual é a natureza real desse fenômeno, e de que maneira ele funciona.

Para começar, é sempre bom colocar na mesa uma definição básica, a partir da qual seja possível orientar uma abordagem mais aprofundada do tema. Então vamos buscar essa definição, e depois tiramos nossas próprias conclusões.

Começamos com Swami Sivananda, bem conhecido dos praticantes de Yoga, que afirma: “O Mantra é a divindade. O Mantra e seu Devata regente são apenas um. O Mantra é o poder divino. A repetição do Mantra elimina a impureza da mente, como a luxuria, a ira, a cobiça, etc.”[1]

Pode-se perceber claramente que ele sustenta uma abordagem tipicamente religiosa para o tema, mas ele deixa claro que a força divina evocada pelo mantra tem a propriedade de limpar a mente. Essa mesma propriedade é citada por Tara Michael[2] que enumera o mantra entre os métodos empregados para obter a limpeza (shaucha), o primeiro dos niyamas do Yoga.

Por uma outra abordagem, o mantra é uma “fórmula ritual sonora, dada pelo mestre a seu discípulo no Hinduísmo e no Budismo, cuja recitação tem o poder de por em ação a influência espiritual que lhe corresponde”[3]. Essa afirmação nos remete ao fato de que o mantra é um elemento importante no rito de iniciação, e por consequência na relação entre o mestre e seu discípulo.

Mas também coloca o mantra dentro de uma perspectiva mística, ou mesmo religiosa, tendo por base a crença de que o “guru” tem a capacidade de oferecer uma chave de acesso ao universo espiritual, através do próprio mantra. Na verdade, o mantra seria a única maneira pela qual o guru poderia transmitir a iniciação ao discípulo.

Mahatma Gandhi teria declarado que “o mantra se torna o cajado da vida de uma pessoa e a carrega através de cada provação. Ele não é repetido apenas pela repetição, mas é repetido para obter purificação, como um auxílio ao esforço… não é uma repetição vazia. Para cada repetição ele tem um novo significado, levando você cada vez mais perto de Deus”[4]. Mais uma vez, uma declaração com perfil religioso.

Essa recorrência de Deus ou dos deuses envolvidos na definição de “mantra” pode sugerir que este termo faça referência apenas a assunto de interesse religioso, mas isso não corresponde exatamente à verdade. O mantra tem um significado filosófico (metafísico, para ser mais preciso) que vamos descrever mais adiante.

Vamos, porém, aprofundar nossa abordagem tomando referências que, embora não estejam diretamente vinculadas ao Yoga, podem nos ajudar a entender melhor alguns aspectos menos evidentes do nosso assunto.

Essas referências que vimos até aqui, como a de Sivananda, que alegam que o mantra é Deus, podem receber um esclarecimento sugestivo por parte de Ernst Cassirer, filósofo neokantiano da Escola de Marburg, ao afirmar que “amiúde, o nome do deus, não o próprio deus, parece ser a verdadeira fonte de sua eficácia.

O conhecimento deste nome submete àquele que o possua também o ser e a vontade do deus”[5], explicando também que “na Índia, o poder do Discurso (Vác) se antepõe ao poder dos próprios deuses”[6].

A palavra, portanto, está dotada de um potencial que ultrapassa a simples designação de um objeto, seja ele concreto ou abstrato, pois permite ao falante apropriar-se de forças que se encontrariam entre a palavra em si e o seu possível significado.

Esse potencial é comparativamente o mesmo que se oferece ao poeta através da construção da “imagem poética”. Usando a definição oferecida pelo mexicano Octavio Paz, o “significado” é um “querer dizer” que pode ser dito de outra maneira, ou seja, as palavras comuns podem ser explicadas por outras palavras.

Mas o sentido da imagem poética, por outro lado, é a própria imagem, e não se pode dizer com outras palavras. Nada, exceto ela, pode dizer o que ela quer dizer. Isto significa que as palavras, tocadas pela poesia, deixam de apontar para objetos externos e passam a ser, elas mesmas a Natureza designada e o sentido da designação. A linguagem cessa imediatamente de ser linguagem – o poema, nascido da palavra, desemboca em algo que a transpassa[7].

A palavra mítica, o mantra, tem um poder espiritual inerente: “a palavra tem de ser concebida, no sentido mítico, como ser substancial e como força substancial”[8].

Essa grande força de que é dotada a palavra, quando se converte em mantra, era reconhecida pelos pensadores da Índia antiga, que entendiam que era essa a única fonte de revelação possível. Uma revelação (“shruti”) não se vê, na tradição sânscrita, mas se escuta (do verbo shru – escutar).

Cada um dos grandes munis (sábios) que compuseram os mais antigos mantras era chamado de kavi (poeta), e suas palavras eram dotadas do poder extraordinário de ativar o ritual com a presença dos deuses (forças naturais) que se manifestavam por meio dessas palavras. O mantra, portanto, é a palavra de nossos antepassados e expressa a revelação de sua herança vivencial para nós.

Como criação de poetas, cada mantra é uma poesia minimalista que abriga um único “insight”. Esse conteúdo subjetivo do mantra pode então ser transmitido com simplicidade para as gerações futuras, não pela compreensão do significado dos sons ou palavras que o compõem, mas pelo entendimento daquele “insight” que ali se oculta.

Para que se entenda esse procedimento, vale a pena reproduzir uma explicação oferecida por Mircea Eliade:

“Acontece muitas vezes que toda uma metafísica está concentrada em um mantra. As 8.000 estrofes do volumoso tratado da tradição Mahayana, Ashtasahasrika-prajñaparamita, foram resumidas em algumas estrofes que constituem o Prajñaparamita-hrdaya-sutra. Este pequeno texto foi reduzido a algumas linhas na Prajñaparamita–dharani que, por sua vez, foi concentrada no Prajñaparamita Manbija-mantra; finalmente, esse mantra foi reduzido à sua ‘semente’, o bija-mantra: pram. De forma que se poderia dominar toda a metafísica prajñaparamita murmurando a sílaba pram” [9].

O mantra, portanto é uma ferramenta que possibilita a assimilação do sentido de um assunto complexo por uma via que não passa pela razão. Ele opera na esfera do princípio Buddhi (inteligência), que segundo o entendimento do Samkhya, que dá os fundamentos filosóficos para o Yoga, é o princípio formador do próprio Universo.

A capacidade de perceber o sentido de um assunto depende de como está funcionando o processo que evoca, em nossa mente, o significado de uma palavra que lemos, ouvimos ou pronunciamos. Esse fenômeno que traz o significado da palavra à nossa consciência é chamado em Sânscrito de “sphota”.

Sphota designa literalmente um inchaço ou tumor. Deriva da raiz verbal “sphut” que significa “crescer, inchar”, que é o mesmo significado da raiz que dá origem à palavra “Brahma”.

A reflexão sânscrita concebe o sphota como o fenômeno que faz crescer, em nossa mente, a ideia relacionada a cada palavra que ouvimos.

Não se trata, no entanto, de ideias relacionadas a esses sons por mera convenção, mas sim ideias que deles derivam espontaneamente em razão do sentido etimológico de alguma raiz verbal, ou por sua ressonância natural com áreas de nosso corpo ou de nossa mente.

Essa conexão natural da palavra com o efeito que ela produz em nossa mente se chama, na gramática, “yoga”.

Quando somos capazes de evocar o significado yoguico dos sons e das palavras que utilizamos, e construimos com eles um discurso que ecoa em nosso organismo como um todo, então estamos operando mantras.

O mantra implica numa maneira de orientar os nossos pensamentos de modo que eles se libertem da racionalidade e mergulhem na profundidade da ressonância inconsciente (“visceral”) ou transitem poeticamente pela superfície das formas. “A Terra na profundidade, o Céu na superfície”, diz a Taittiriya Samhita (Yajur Veda Negro), I, 5, 4.

Um novo conjunto de forças é posto em ação pelo mantra, que rompe a barreira gramatical das palavras e, fugindo aos significados convencionais, trabalha apenas com o sentido natural evocado pelos seus constituintes básicos.

Podemos afirmar, por essa razão, que os mantras não operam com sons comuns, mas com “tipos de sons” que têm a função de diferenciar o sentido das palavras[10]. Os mantras operam com fonemas, e não com outros tipos de sons.

Para que sejam aceitos como mantras, um som, uma palavra, ou uma série de sons e palavras, precisam ser capazes de dirigir nossa atenção ao sphota que eles evocam.

Eles precisam colocar a mente em movimento, e ao mesmo tempo permitir que ela permaneça dessa maneira, sem que chegue a uma conclusão final – isto é, sem brindá-la com um significado formal.

O pensamento produzido pelo mantra é puro dinamismo, e, por isso mesmo, inconclusivo. O mantra não precisa de um significado, e mesmo assim, sua “significação” é o fato dele indicar um sentido para onde a nossa atenção deve ser dirigir.

A dualidade das palavras, que se compõem de uma forma sonora (ou escrita) e de um conteúdo (o seu significado), não é normalmente percebida enquanto estamos falando.

Nossa atenção permanece focada no discurso presente, que se resume a um fluxo descritivo, dinâmico, aparente desconectado de limites temporais. No momento em que falamos, não há ponto de partida nem ponto de chegada, mas apenas um movimento sem limites de ideias, que tende ao infinito e ao eterno[11].

Esse é o cenário em que o sphota existe de fato – um puro “devir” que não se concretiza, mas apenas indica uma direção para onde se dirige a nossa atenção. O sphota cria um foco, que será destruído no instante em que o pensamento se fixar no significado do discurso.

Se percebermos a dualidade das palavras, escapamos do discurso para cair no dicionário.

A natureza atemporal do discurso é uma propriedade capturada pela nossa atenção quando ela não se fixa nem na forma nem no conteúdo do que se diz.

Essa atenção que captura o fluxo do discurso e se liberta das armadilhas da forma, é chamada “dhi”, em Sânscrito, e poderia ser traduzida por “pensamento místico ou sagrado”. É daí que surge o termo “samadhi”, tão caro aos yoguinas, e que expressa o estado em que nossa atenção captura apenas esse fluxo do sphota.

Para que o assunto fique mais claro, basta lembrar que o termo “mantra” é formado a partir da raiz verbal “man” que significa “pensar”. O sufixo “tra”, que expressa o meio ou instrumento pelo qual a ação configurada pela raiz se concretiza[12], completa o significado da palavra “mantra”, que pode ser então traduzida como “instrumento que viabiliza o pensar”.

O mantra, portanto, é um recorte que fazemos com nossa atenção na força que mantém a nossa mente funcionando, e que ativa a nossa inteligência – o sphota.

Entendido dessa maneira, o mantra perde um pouco do perfil religioso enunciado nas primeiras citações deste artigo para assumir o papel de ferramenta que possibilita o pensamento yoguico, emblematicamente representado pelo samadhi.

Esse é um pensamento espontâneo e natural, que se faz com o corpo inteiro, e não apenas com a razão. A atividade mental que o mantra induz no praticante tem um caráter vivencial, dotada da capacidade de dar a ele um entendimento absolutamente pessoal, único, do momento que ele está experimentando.

Essa experiência vivencial, no entanto, não é inovadora. Com isso queremos dizer que tudo o que ele experimenta com a vivência propiciada pelo mantra é aquilo que ele já tem dentro de si.

O mantra apenas revela a ele a herança vivencial de seus antepassados, que constitui a base natural de sua identidade como pessoa. Nesse sentido se compreende a razão de se alegar que o mantra tem uma função reveladora. Ele é o eco das vozes distantes de nossos antepassados.

Então o mantra tem um perfil ao mesmo tempo pessoal – que surge espontaneamente – e coletivo, por se valer do poder de uma herança cultural (seja na forma da linguagem que lhe dá sustentação, seja na força dos antepassados, revelada através de sua utilização).

Mas mesmo dentro da perspectiva de uma herança coletiva, “os mantras buscam restaurar a palavra a um estado no qual o nome não mais evoca a imagem de um objeto, mas sua força (shakti)[13]”, e essa força se manifesta por meio da própria estrutura corporal e mental do praticante, transformando-se dessa maneira ela também em uma expressão pessoal daquele indivíduo.

O yogi que se dedica à prática de mantras precisa estar atento ao fato de que o seu corpo e o meio no qual ele está imerso obedecem aos comandos de sua mente, segundo a teoria dos mantras, e que por essa razão ele deve se valer de alguns cuidados em sua prática.

“As pessoas por toda parte parecem sentir, consciente ou inconscientemente, que pronunciar um nome pode evocar a coisa nomeada. Por extensão, nós sentimos que falar sobre alguma coisa pode fazê-la acontecer, ou pelo menos torná-la mais provável de acontecer[14]”. Uma disciplina mental é, portanto, imprescindível para quem deseja se utilizar dos mantras.

O pensamento está frequentemente numa condição indócil e agitada, produzindo ideias que habitualmente fogem ao nosso controle.

Mas existe um procedimento secundário da prática dos mantras que tem a capacidade de lançar essa parte irrequieta de nossa mente em uma armadilha “circular”. Esse procedimento se chama “japa”, e consiste na repetição cíclica de uma recitação cujo significado seja de pouca importância para nós, ou que já tenha sido assimilado e não apresente interesse, exceto pelo seu aspecto rítmico e repetitivo.

É o mesmo fenômeno que nos faz cantar repetidamente um “jingle” publicitário, que chega a irritar, por surgir em nossa mente a cada momento de distração, sem ter sido solicitado. A diferença é que o “japa” é induzido intencionalmente pelo praticante, com a intenção de capturar a parcela mais superficial da mente e aprisioná-la nessa obrigação de ficar repetindo uma sequencia sonora.

Uma vez aprisionado pelo japa, o aspecto mais superficial da mente sai de cena e permite que nossa atenção seja operada por camadas mais profundas de nossa mente, o que torna possível a meditação.

O despertar dessa mente mais profunda (cihttam ou vajrachittam) pode tornar muito mais fácil a realização do Yoga, cujo foco é fazer a “forma autêntica” (svarupam) do “eu” se manifestar – de acordo com a definição de Yoga oferecida pelos sutras do sábio Patáñjali.

Há também um aspecto importante do mantra que é particularmente explorado dentro do tantrismo. A substância original da qual deriva o som, que é chamada de “akasha” (espaço), é a mesma substância, de acordo com a visão hindu, da qual deriva a luz.

Talvez isso tenha surgido da associação da luz do relâmpago ao som do trovão. Por essa razão se acredita que um mantra pode existir em forma de som e também em forma de luz.

Para entender essa possibilidade, vamos partir da crença universalmente difundida no Hinduísmo, segundo a qual a fonte original da qual é criado o Universo pode ser resumida numa palavra monossilábica – o “OM”.

Para os autores das upanishadas, Brahma é o OM, e Brahma é a palavra que resume os Vedas, e também é o conjunto dos versos dos Vedas. Para os pensadores tântricos, Shiva assume esse papel, recebendo às vezes a designação “Padam” (palavra).

Tanto Shiva quanto Brahma são descritos com o tamanho de um polegar, e residindo na região do coração – onde a tradição também coloca a sílaba OM.

Cada vez que uma pessoa deseja dizer alguma coisa, ela mobiliza a energia vital de seu organismo para dar corpo aos sons correspondentes. Movida junto com o ar, pela respiração, essa energia vital é concentrada na coluna vertebral e desce por ali até a sua base, onde ganha forma o som “visível” (pashyanti nada), feito de luz.

É como luz que ele dá o primeiro passo para se converter de fenômeno mental, subjetivo, em fenômeno material.

Essa luz se diz que só pode ser observada pelos olhos internos de um yogi. Essa luz expressa a idéia à qual o som estará ligado pelo poder do mantra.

Da base da coluna, esse som em formação avança para o alto e penetra na região do coração. Ali ele se converte em som “intermediário” (madhyama nada), onde ele ganha dinamismo e acesso à diversidade.

É no coração que o mantra ganha o sphota – a força que dará significação a ele. Nesse estágio, todas as sílabas possíveis se abrem como possibilidade para o mantra, que ainda é apenas uma sílaba genérica e universal – o OM.

No terceiro estágio, o mantra em formação, empurrado para o alto pelo vigor (ojas) da corrente vital, alcança a região da garganta, onde se reúne à coluna do ar da respiração e pela modulação do aparelho fonador constrói o som audível (vaikhari nada).

E assim nasce o mantra, lançado à existência com o corpo inteiro, e não apenas com a garganta do praticante.

A revelação que o mantra evoca restaura o dharma dos ancestrais, ou seja, o conjunto de condições naturais que dá força para a família do praticante. O caráter revelador do mantra equivale ao das mudrás, dentre as práticas associadas ao Yoga.

De acordo com Julius Evola “essas posturas [as mudras] têm uma ‘forma (gestalt) do gesto’ que, uma vez que tenha sido entendida, se acredita que tenha um poder iluminador e revelatório[15]”. Essa proposição nos permite reler as citações iniciais deste capítulo, que fazem referência a um poder “purificador” do mantra.

Ao trazer à consciência o dharma dos ancestrais, o mantra remove do foco da atenção as interferências que sejam divergentes dessa fonte, fazendo a mente refletir com mais transparência as características peculiares à família do recitador.

Este é o significado principal da purificação alegada – uma mente com menos interferências externas se torna uma expressão mais pura (autêntica) da vocação da família.

A mesma lógica se aplica, com mais propriedade ainda, se imaginarmos a possibilidade de o mantra evocar a memória ancestral adaptada às condições peculiares ao indivíduo que o utiliza. Neste caso não é o kuladharma (dharma da família) que será fortalecido, mas o svadharma (o dharma pessoal) do praticante que leva o benefício.

A mente do praticante se torna, então, uma expressão cristalina da natureza verdadeira do yogi, e a realização do Yoga acontece com naturalidade.

O verdadeiro mantra, portanto, é um “insight”. É como uma imagem poética muito significativa para o grupo familiar ou para o indivíduo, isoladamente (mantra pessoal).

Ainda que tradicionalmente o mantra seja ensinado (ou revelado) por um membro mais velho da família ou por um guru agregado a ela, a sua aquisição também pode ocorrer durante uma meditação, quando ele é ouvido internamente (mentalmente) pelo yogi.

Essa origem intuitiva, se ocorrida de maneira adequada, não diminui a potência indutora da experiência mística, de que os mantras são dotados. Esse mantra verdadeiro é uma poderosa ferramenta que pode ser utilizada para a realização do Yoga.

 

Um pouco de História

Os mantras mais antigos, sem sombra de dúvida são os versos que compõem os hinos do Rig Veda. Os mais antigos remontam a mais de quatro mil anos antes da Era comum. Foram compostos por indivíduos que ficaram conhecidos como “poetas” (usualmente chamados de “videntes”).

O objetivo desses mantras vedicos era evocar as forças naturais, representadas pelos deuses, para que estivessem ativas durante a realização dos rituais de sacrifício. O conjunto desses mantras constitui a revelação vedica.

De todos os versos que constituem o Veda original, um foi escolhido como aquele que resume todo o sentido da coleção completa. Esse mantra é conhecido como Gayatri mantra – seu nome designa a métrica com a qual foi composto.

Esse mantra é recitado diariamente por todos os brahmanes, em especial no momento do nascer do Sol e também no poente.

O conceito de mantra, no período vedico, sugere que sejam apenas fórmulas sagradas para recitação durante o sacrifício, mas o termo também se aplica a qualquer consulta ou planejamento que demande o uso da inteligência.

Todo rei tinha ministros que lhe ofereciam os mantras nos momentos em que fossem solicitados. Isto significa que desde aqueles tempos remotos a palavra mantra já estava associada ao conceito do “insight”, do qual jamais se separou ao longo de sua trajetória histórica.

Posteriormente surgem questionamentos ao foco sacrificial da cultura vedica, e surge como resultado a literatura das upanishadas[16], composições de caráter místico, nas quais o poder da palavra se torna um importante ponto de reflexão – que resulta no amadurecimento do conceito de Brahma, idêntico ao “eu” pessoal de cada um de nós.

O mantra aqui se torna sinônimo tanto dos versos vedicos quanto daquele que encarna o espírito dos Vedas. As upanishadas marcam um momento cultural em que ocorre a internalização do ritual, convertido gradualmente no Yoga que será delineado nos Sútras de Patáñjali.

Nesse processo os mantras também se internalizam, evocando agora as forças que se alojam na mente do praticante (as atividades mentais). O quarto capitulo dos Sútras se inicia com a afirmação: “os siddhis (poderes especiais) são produzidos por nascimento, pelas plantas, pelo mantra, pela ascese (tapas) ou pelo samadhi” (IV, 1).

Um terceiro conceito de mantra vai se desenvolver intensamente a partir do Budismo, com o nascimento da literatura tântrica.

Aqui ele vai se agregar a práticas de magia ritual com as mais variadas finalidades, tornando-se tão importante dentro da concepção tântrica do Universo que a própria literatura tântrica foi chamada por alguns autores de “mantra shastra”.

Uma das consequências do desenvolvimento do mantra dentro do cenário tântrico foi o aperfeiçoamento do alfabeto para grafar o Sânscrito, a partir do século VI de nossa Era, culminando com o alfabeto devanagari, que nasceu envolvido em especulações mágicas envolvendo a relação entre os mantras e o corpo humano.

Talvez a mais conhecida aplicação dessa relação do alfabeto devanagari com o corpo humano seja a teoria dos chakras, com a representação das letras em cada uma das pétalas dos seis chakras mais importantes.

Nessa teoria as forças são representadas em nosso corpo organizadas de modo vegetativo, com bulbos, caules e flores de lótus que brotam em pontos especiais do corpo. Cada um desses lugares é também marcado por uma sílaba “semente” (bija mantra).

As pétalas que nascem em cada uma das 50 pétalas do sistema dos seis chakras são identificadas pelas 49 sílabas do alfabeto devanagari, acrescidas de uma letra adicional que representa o encontro consonantal “ksha”, que aparece na palavra “akshara” (“indestrutível”), que serve para designar a sílaba, na gramática do Sânscrito.

Cada sílaba está acompanhada de um par de símbolos especiais de nasalização, conhecidos como nada e bindu (uma linha curva e um ponto que se coloca sobre ela), e que representam o som cósmico fundamental (nada), Brahma ou Shiva, e a força cósmica fundamental (bindu), a Shakti.

Estes dois sinais são as marcas características dos bija mantras conhecidos como “matrikas” (mãezinhas) na tradição tântrica. Sem esses sinais, são sílabas comuns, com eles se tornam mantras de verdade.

Os mantras elaborados com finalidade mágica (proteção, desenvolvimento de qualidades ou poderes especiais, obtenção de favores e benefícios materiais, etc.) se tornaram muito populares, e disputam com os mantras de caráter devocional (religioso) a preferência da população hindu, de uma maneira geral.

Nenhum desses mantras, no entanto, tem qualquer interesse para o Yoga.

Os yoginas que se interessam pelo assunto dão preferência aos mantras de caráter místico, ou seja, aqueles que têm a capacidade de evocar as forças internas que dão ao praticante uma convicção acerca de sua própria identidade familiar ou pessoal.

Esses mantras são eficazes para preparar a mente para a meditação, e levam o yogi a um estado superior de entendimento de sua relação com o conjunto da Natureza – sem outra finalidade além da descoberta e realização do si-mesmo (atma).

 


[1] “Tantra Yoga, Nada Yoga, Kriya Yoga”, Editorial Kier, Buenos Aires, 1983, pág. 56.
[2] “O Yoga”, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1976, pág. 79.
[3] “Dicionário de Símbolos” por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1999 (14ª edição), pág. 589.
[4] Citado por Eknath Easwaran em “The Mantram Handbook”, Nilgiri Press, Petaluma, Califórnia, 3rd Printing, 1982, à página 42.
[5] “Linguagem e Mito”, Editora Perspectiva, São Paulo, 1972, página 67.
[6] Op.cit., pág 66.
[7] Veja o capítulo “A Imagem” em “Signos em Rotação”, Editora Perspectiva, São Paulo, 1976.
[8] Cf. Enrst Cassirer, op. cit., pág. 79.
[9] “Yoga, Imortalidade e Liberdade”, Ed. Palas Athena, São Paulo, 2004, pág. 182
[10] cf. A. Rosetti em “Introdução à Fonética”, Publicações Europa-América, Lisboa, 3ª edição, 1974, página 152.
[11] Uma ilustrativa reflexão sobre esse tema do sentido e da significação das palavras, embora não focada na questão do mantra, pode ser encontrada em “Lógica do Sentido”, por Gilles Deleuze, Editora Perspectiva/Edusp, São Paulo, 1974.
[12] Cf. Carlos Alberto da Fonseca e Mario Ferreira em “Introdução ao Sânscrito Clássico”, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1978, página 178.
[13] Cf. Julius Evola em “The Yoga of Power”, Inner Traditionas International, Rochester (Vermont, EUA), 1992, página 110.
[14] Cf. Eknath Easwaran, op. cit., página 21.
[15] Op. cit. página 102.
[16] Veja, sobre isso, os capítulos “Como o Yoga Evoluiu” e “Yoga Upanishadas”